Há uma iniciativa poeticamente poderosa ocorrendo nos palcos teatrais europeus. E não me atenho, nem por sugestão inconsciente, à força simbólica que o termo “poesia” ainda possa evocar nos dias atuais, pois me é crença pessoal que o sentido desta palavra redentora já tenha se esvaído.
Ao dizer “poeticamente”, me refiro antes à proposta de sentido original que alguma vez o termo abarcou: ou seja, o da poesia com saudade de sua infância; o que ela significou quando ainda brincava em Grécia sob o nome de poiesis (ποίησις).
Companhias como Familie Floz (Alemanha), Petit Théâtres de Gestes, Cie Non Nova, La Pendue e Théâtre La Licorne (França), Teatro de Marionetas do Porto, e A Tarumba (Portugal), Kaos Teatro (Espanha), têm se dedicado a criar pequenos acontecimentos mágicos, desabrochar de flores disfarçados sob a alcunha de “espetáculos de teatro”. São encenações, performances, apresentações que, como obra de poiesis, vêm à luz, irrompem no tempo, fulguram, desaparecem mas… deixam rastros.
É de impressionar que o teatro, este “crepúsculo” que só perfeitamente mergulha luz nos corações se o espetáculo se der diante a presença física do espectador (pois de nada vale teatro ou pôr do sol filmado, é preciso estar ali a ser tocado pelo calor); é de impressionar que o teatro encenado por estas companhias, espetáculos nati-mortos ali nos efêmeros instantes da apresentação, perdurem em nós como fantasmas que não nos deixam mais de assombrar com vultos de reminiscências que de quando em quando nos atravessam.
E poiesis sugere algo disto, de um “produzir criador”, de um “aparecimento” de algo que é “trazido à luz” (pró-duzir,) e que, em sua irrupção, “cria” a possibilidade de transformar o que está à sua volta. O que é absolutamente distinto de “produção criativa”, modo como fatalmente se compreende poesia…
Sim, há uma iniciativa estética e poeticamente poderosa ocorrendo (outra vez e ainda) nos palcos teatrais europeus. Trata-se de um retorno ao uso das Máscaras, numa evocação a Dioniso e, consequentemente, do retorno das experiências catárticas que o sátiro possibilita, como a de, por poiesis, trazer da uva o vinho…
Mas o que diretores e a atores destas companhias fazem de tão especial?
SE OCULTAM.
DESAPARECEM…
O quê vem aos palcos?
Títeres de madeira; música; marionetes suspensas por fios; textos que distorcem ainda mais os sentidos pois as palavras flutuam em Cadavre Exquis; fantoches e outras fantasmagorias em papel, pano, látex; argumentos que mais procuram levantar questões que respondê-las; e, sobretudo, MÁSCARAS e a mística experiência que estas propiciam: a de que o público espreite e flerte com a essência de algo que através delas se insinua mas que, como um vulto, os escapa. Poiesis…
Não há, nos espetáculos destas companhias, ninguém a serviço de si mesmo. Diretores, atores e técnicos estão todos, em verdade, a ser manipulados (e desejam isto!) pelos títeres, marionetes e máscaras que tomam de assalto os palcos com uma vivacidade que se não nos despertasse de nosso sono dogmático, nos constrangeria ao nos afrontar com o modo cadavérico com o qual temos nos apresentado à vida.
Pois as máscaras e títeres de madeira trazidos à luz da ribalta, carregam uma expressividade e uma eloquência que tem sua origem na outra face da moeda de onde colhemos nossa parvoíce e tepidez. Enquanto a maior parte de nós terceiriza a própria identidade, atribuindo aos outros a responsabilidade de aprovar ou mesmo garantir o sentido de nossas escolhas pessoais, monetizando nossa auto-estima pela quantidade de likes que outros nos atribuem — nosso valor sendo proporcional a um número (o de visualizações); a mascarada, por sua vez e por óbvio, elegeu o reverso do dobrão que, não sem consequências, desprezamos: aquele que cuja virtude é a própria face; e cujo valor é o que se insinua através dela.
Enquanto nossa identidade é moldada por um Ego que, para manter-se de pé, precisa ser inflado pela aprovação dos outros, os títeres só ganham vida quando e se o artista garimpa (e traz à luz!) do mais íntimo de si mesmo, emoções verdadeiras, sentimentos radiantes, a quinta-essência de suas dores e alegrias mais humanas (e por isso comum a todos nós). Os atores descobrem em si um modo de dar vida a bonecos de madeira; os bonecos de madeira nos desafiam a parecer tão vivos quanto eles…
Sim, há outra vez e ainda pequenas auroras, estética e poeticamente poderosas, a erguer o véu da noite nos palcos teatrais europeus.
São espetáculos esteticamente arrebatadores nos quais a Beleza nos põe a sentar em Seu colo; e, poeticamente perturbadores, pois enquanto advém à luz de nossas retinas, nos fazem desconfiar daquilo mesmo que temos diante dos olhos.
Os atores trazem à luz as máscaras; estas trazem à luz algo de inquietante; e tudo isto nos traz à luz de nós mesmos… Não, não são produções teatrais criativas; são produções criadoras que desvelam diante de nossos olhos um movimento do mistério rumo à concepção, como aquele prenúncio de vida que retumba, por exemplo, no íntimo de uma semente quando esta beija a terra úmida. Alí, naquele instante, uma dança de enzimas liberta na semente sua potência de tornar-se árvore. É esta potência que dilacera Cronos; pois, neste instante místico, o pequeno grão é, ao mesmo tempo, semente e árvore. É toda sua existência atualizada no agora. A ciranda onde giram de mãos dadas, passado, presente e futuro. E é algo assim que ocorre nessas encenações. As máscaras escondem os atores mas revelam algo destes; e refletem a nós mesmos e nos revelam enquanto tentamos, constrangidos, nos esconder na escuridão e anonimato da plateia; as máscaras dilaceram as identidades de todos e nos reunifica a todos no todo Uno do qual nos que esquecemos pertencer/ser. Eccolo! Si tratta di Dioniso!
É assombroso que as encenações destas companhias nos transladem para uma experiência com o tempo no qual este não é outro senão os instantes do agora. Onde só o que há, só o que interessa é o que está a ser posto, segundo a segundo, diante dos olhos.
E é ainda mais assombroso que tais acontecimentos, não sejam apenas obras destas companhias, mas também frutos de iniciativas pessoais de artistas maduros bem como de uma trupe jovem, muito jovem.
Encenadores independentes como Renaud Herbin e Yoann Beourgeois (França) e Marta Cuscunà (Itália), tem garimpado preciosidades. Mas SORRY, BOYS, é sobre a ragazza italianni que quero falar primeiro.
Inicio com Marta Cuscunà uma série de 13 ensaios que me comprometi a escrever para o coletivo cultural O VULTO, aqui de Lisboa. Uma iniciativa capitaneada por Renata Boiteux, doutoranda em educação e pesquisadora do CeiED – Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento, uma unidade de I&D constituída na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT) para as áreas da Educação, Patrimônio, Desenvolvimento Humano e Museologia, Portugal.
Escolhi falar dessa estirpe estranha à qual pertenço (a dos atores) que ganha a existência se escondendo atrás de máscaras; que luta contra as leis da natureza ao se dedicar a utopia(?) de dar vida a bonecos de madeira; que moe seus próprios corações para (re)carregar as palavras com o sentido das emoções, na esperança de que nos comuniquemos como música e não mais trocando vinténs de significados por meio de fonemas, convenções silábicas sonoras que já não são mais que cadáveres de conceitos.
Marta Cuscunà me abriu o caminho. Vou seguir suas sendas e tentar refletir com as minhas palavras um pouco das cores luminosas que ela irradiou com seu espetáculo Sorry, boys, tema de meu próximo artigo. Que não me faltem tintas à paleta.
Vitor Hugo